Aquele eu que não sou eu
Outro dia eu peguei o baita de um engarrafamento. Estava chovendo. Você sabe como é o Rio, basta cair um único pingo de chuva, que a cidade inteira para. Eu estava lá, sentada naqueles bancos velhos, escutando a conversa alta em portunhol do senhor de idade a minha frente, controlando-me para não sentar ao seu lado e perguntar "hola, como estás?", tentando ler um pouquinho do artigo universitário da mulher que estava sentada ao meu lado, ela parecia bem estudiosa. Sei lá, acho que sempre fico meio alienada quando estou no ônibus. Começo a prestar atenção em um bando de coisas. Naquela pastelaria que eu achei que só tivesse no meu bairro, na locadora que achei que já tivesse falido, nos clientes do Subway e nas pessoas da pracinha.
Em meio ao engarrafamento, o som das buzinas estressantes dos carros e os gritos dos torcedores do Flamengo - meeeeeengo! - a caminho de mais um jogo no Maracanã, comecei a pensar em tudo aquilo que minha mente tentou descartar. Me lembrei de coisas que já não lembrava. Quero dizer, não é que eu não lembrasse, só não estava fazendo esforço algum em me recordar.
Me lembrei do meu primeiro dia como aluna do Pedro II, surrada em um uniforme bem maior do que eu e tentando ser gente. Me lembrei da primeira vez que cantei o hino nacional e astiei a bandeira, quem me conhece sabe que não sou patriota, mas que grande honra foi! Me lembrei de como me escondi no auditório da escola para chorar pela primeira nota vermelha em Matemática. Me lembrei da música do Sum 41 que tanto amava em 2009 e hoje já nem escuto mais - péra, a banda ainda existe? Me lembrei do meu primeiro show, em que furei fila sem dó nem piedade. Lembrei da primeira amiga que hoje se tornou mais um rosto em meu álbum de fotos.
Me lembrei de tantos momentos enquanto meu destino não parecia próximo. Passei pela igreja em que um dia fui daminha de honra. Foi a primeira e última vez que fiz cachos nos cabelo, até me render à chapinha. Me lembrei de professores, colegas de classe, estranhos, amigos que não eram tão amigos, vizinhos que não são mais vizinhos, a turminha do play que ficou chata, aquela amiguinha que disse que me amaria para sempre antes de descobrirmos que o "para sempre" é, na verdade, finito.
Me lembrei, com muita calma, de tudo o que fui. Da menininha que sonhava em ser cantora, em fazer outra arte que não fosse pintar o sete. Pensei em mim, para onde estava indo. Rua Teodoro da Silva, ok motorista?
A verdade, sinto lhe informar, é que eu não sou exatamente eu. Eu sou cada um que por mim passou. Eu sou você, ele, ela, fulano, sicrana, beltrano. A relva nunca é a mesma depois da chuva. Sou a junção de tudo, a união de todas as peças de um quebra-cabeça. Não sou a atriz, sou a peça. Não sou os acordes, nem a letra, sou a música inteira. Você é uma página e eu sou o livro. E se você estiver lendo isso, é porque, de uma forma ou de outra, você é parte disso tudo. Você pode ser uma frase, um parágrafo, uma ilustração, um capítulo deste livro que ainda está em processo de escrita.
Tenha uma boa leitura.
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Nossa história é um livro em branco, que vamos escrevendo a cada dia, a cada momento vivido, a cada lágrima que escorre, a cada sorriso que nasce em nossos lábios.
ResponderExcluirAmei sua crônica, parabéns!!
www.serleitora.com.br
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